Edgar Morin, um dos primeiros intelectuais a refletir sobre os acontecimentos contestatórios do período, disse, em entrevista concedida em 1978:
"A revolta estudantil nos anos 1967-68 foi surpreendente por ser internacional, atingindo países muito diferentes quanto ao nível de vida ou quanto ao sistema social ou político. Essa revolta começa nos Estados Unidos, em Berkeley, sacode em seguida os países ocidentais, depois os países comunistas, como a Polônia, e chega até o Oriente Médio e a América Latina."(1)
O que levou jovens em grande parte "bem-nascidos", com acesso a cultura, estudo, formação universitária e condições de sobrevivência em uma sociedade materialmente próspera a uma revolta que se caracterizou por contestar tudo o que estava estabelecido social e politicamente? Tentaremos, nesta breve exposição, apontar caminhos para a solução da questão colocada.
É preciso ter em mente que a compreensão de um processo histórico não se dá de maneira apropriada se o foco da análise estiver sobre indivíduos, herói, líderes e "guias". A estrutura histórica que envolve os personagens é extremamente importante para a compreensão dos "porquês". Sem isso, os acontecimentos, parte conjuntural da História, perdem seu sentido geral.
A autora e professora livre-docente da USP Olgária Chain Féres Matos argumenta, assim como Edgar Morin, que as revoltas estudantis do período estudado possuem um caráter internacional e, para ela, solidário, em muitos momentos, com manifestações de apoio e de comunicação entre os movimentos em diversas partes do mundo(2). Neste sentido, é importante ressaltar a relevância dos meios de comunicação no contexto histórico tratado. Não só dos meios de comunicação de massa, como a imprensa escrita, o rádio e a televisão, mas também de ferramentas como o telefone e o telégrafo. O desenvolvimento industrial trouxe uma dinâmica diferente para os movimentos de contestação – e também para os grupos contestados – na qual a velocidade dos processos tornou-se maior. Além disso, esse grande desenvolvimento da tecnologia – muito maior do que o existente em 1871, época da Comuna de Paris, por exemplo – abriu campo para propostas inovadoras e – pode-se até arriscar dizer – utópicas, como as que pregavam a mecanização total do trabalho para que os membros da sociedade pudessem se dedicar totalmente à aquisição de cultura, ao entretenimento, ao prazer. Vale lembrar também que no período posterior à Segunda Guerra Mundial os esforços para a reestabilização das economias europeia e dos EUA são massivos e surtem, de modo geral, efeitos profícuos. Não há crise econômica no final da década de 1960. As sociedades europeia e norte-americana consumiam em grande escala.(3)
A ordem política mundial é a ordem da Guerra Fria. A bipolarização "capitalismo x comunismo" existe e a preocupação de ambos os lados em afastar ameaças inimigas é gigante. Os regimes políticos tendem a adquirir, sejam eles de "esquerda" ou de "direita", feições "rígidas" – tento aqui evitar o uso do termo "autoritário" – devido à existência dentro deste contexto político mundial. O medo de uma guerra nuclear era constante. Guerra da Coréia, Guerra do Vietnã: acontecimentos que dão um exemplo concreto do conflito bipolar.
O "estabelecido" gera nos jovens que protagonizam os movimentos rebeldes do período analisado a necessidade de quebrar exatamente o que está estabelecido. Existe um sentimento de não-adaptação que se mistura com a busca por novas formas de ação diferentes das maneiras da "contestação tradicional". Existe uma influência das teorias da esquerda, sem dúvida – autores como Herbert Marcuse, por exemplo, influenciaram muito a juventude intelectual que se revoltava –, mas até mesmo essa influência guarda uma peculiaridade: as teorias marxistas estavam sob contestação. O leninismo não era inatacável. Tampouco o maoísmo. O pensamento muitas vezes propagado do "único caminho de contestação possível" – seja ele qual for – abre espaço para a heterogeneidade de posições, para a discussão, o debate, a criatividade. Os partidos comunistas e os sindicatos faziam parte do "estabelecido", da estrutura de poder que era contestada.(4) A crítica é feita, podemos arriscar, a tudo. O desejo não é pontual: deseja-se tudo. Tudo o que não está no poder. Deseja-se eliminar tudo aquilo a que os jovens não conseguem – e não querem – se adaptar.
A revolta na França: de Nanterre a Paris
Charles de Gaulle assumira o poder na França em meio a um contexto conturbado: o início dos conflitos com a Argélia, território que, até então, pertencia aos domínios franceses e agora almejava a independência. Adotou uma postura firme e governou de 1959 a 1969.
Charles de Gaulle à época da Segunda Guerra Mundial (c. 1942) (Fonte: Wiki Commons)
A sociedade francesa em 1968 era marcada por uma forte oposição entre modernidade técnica e arcaísmo cultural e social.(5) Uma das vias de interpretação das revoltas estudantis caminha no sentido de explicá-las como sendo uma vontade de inserção do aparelho arcaico da universidade e do meio estudantil nas novidades da sociedade moderna. De acordo com essa visão, portanto, os estudantes não recusariam o "estabelecido" mas pregariam uma revolta tendo em vista sua inserção nessa realidade. Uma outra via de interpretação pontua que as reformas não eram, na verdade, modernizadores e tampouco arcaizantes. Elas rejeitavam o "estabelecido" e não tinham projetos definidos para o que viria depois do momento de mobilização, sendo que as soluções deveriam surgir espontaneamente durante o processo de revolta.
A Universidade de Nanterre foi criada em 1964 para sanar o problema da superlotação das salas da Sorbonne(6), principal universidade da França, em Paris. Localizando-se no subúrbio da cidade, abrigou, nos primeiros momentos após sua fundação (colocados aqui como o período compreendido entre 1964 e 1970), as faculdades de Letras e Ciências Humanas (1964) e Direito (1966).
Imagem feita a partir de fotografias de satélite mostram a localização das universidades Sorbonne (Ponto A) [no Quartier Latin] e Nanterre (Ponto B)
Em 1968, estava em curso um projeto de reforma universitária que, segundo Olgária C. F. Matos, "pretendia derrubar as velhas estruturas universitárias da III República (Universidade que funcionava fechada sobre si mesma, gerando professores para lecionar na própria universidade e no Ensino Médio) para fazer da Universidade, antes tão orgulhosa de sua independência, uma máquina eficaz do aparelho do Estado, que fabricaria quadros 'integrados'." (7) Os estudantes, no âmbito estritamente universitário, posicionam-se contra as reformas no ensino, da forma como eram orquestradas.
Os "não-adaptados" estudantes de Paris não estão culturalmente isolados do restante do mundo. Sabem da existência do movimento hippie nos EUA, de Jimmy Hendrix, Janis Joplin e do The Doors. Não são pioneiros das inovações contestatórias nem do pensamento libertário crescente entre os jovens. Eles não conseguem e não querem se adaptar ao "estabelecido" tanto quanto não querem os jovens dos EUA, da Alemanha, de Praga. Assim sendo, as movimentações nas universidades francesas são constantes entre 1967-1968: interrupções de aulas, contestação de professores, ações diretas que questionavam as estruturas sociais, como ocupação – por jovens do sexo masculino – de alojamentos femininos, numa forma de criticar o recalque com que a sociedade, de um modo geral, tratava assuntos relacionados ao tema. Ações semelhantes e de outras naturezas continuam a ocorrer, mas o momento que se estabelece como marco do início do movimento de mobilização é o dia 22 de março de 1968. Nesse dia, o prédio da administração da Universidade de Nanterre é ocupado pelos estudantes em protesto pela prisão de um estudante que pertencia a um comitê de luta contra a Guerra do Vietnã. As agitações continuam e chegam à Sorbonne. Diversos estudantes são presos e o enfrentamento com a polícia ocorre: são batalhas extremamente violentas que tomam o Quartier Latin.
As relações dos estudantes franceses com os trabalhadores ligados aos sindicatos e ao PCF (Partido Comunista Francês) não eram as melhores – havia rejeição em ambas as partes. Os estudantes condenavam a falta de predisposição dos trabalhadores de se mobilizar em favor de mudanças sociais amplas, acusando-os de restringirem-se a reivindicações salariais. O PCF era parte do "estabelecido" criticado pelos jovens. Eles repudiavam tanto o conformismo burguês quanto o conservadorismo revolucionário(8). Já os trabalhadores criticavam os estudantes "filhos de grandes burgueses"(9) que tentariam, naquele momento, dar lições de como agir aos operários. A antipatia era recíproca.
Para Edgar Morin, em "maio de 1968 a CGT [Confederação Geral dos Trabalhadores] se opõe ao 22 de março [marco do início da revolta dos estudantes], cada um ocupando dois pólos da situação efervescente: o 22 de março ocupava o pólo soviético gestionário e a CGT o pólo reivindicativo-salarial"(10). O movimento dos trabalhadores, que inicia suas manifestações no dia 1° de maio de 1968, levou a cabo uma greve geral que mobilizou 10 milhões de trabalhadores. Durante todo o período da mobilização, buscou distanciar-se dos estudantes, proibindo a panfletagem destes na porta das fábricas e publicando panfletos e artigos contrários à participação dos estudantes no movimento do proletariado. Olgária C. F. Matos ressalta que os contatos e a solidariedade entre estudantes e trabalhadores existiam e eram grandes(11), mas isso deve ser relativizado. Contatos existiam, não se pode negar. Porém, tais misturas entre os movimentos realizavam-se principalmente através dos trabalhadores jovens, que tinham formas de comunicação com os estudantes. No entanto, de modo geral, os movimentos sindicalista e estudantil recusavam-se mutuamente.
Cartaz com as inscrições: "CGT [Confederação Geral dos Trabalhadores], CFDT [Confederação Francesa Democrática do Trabalho], FO – União (...) Ação (...) Para satisfazer nossas reivindicações fundamentais" - 1968 (Fonte: Jean-Claude Seine. Website: http://www.photos-mai68.com/)
Desde os primeiros dias de maio, os confrontos aumentaram em sua frequência e proporção. A Sorbonne e outras universidades foram ocupadas. Barricadas foram montadas nas ruas, protegendo o Quartier Latin daquilo que era recusado pelos jovens. As barricadas eram para os estudantes a retomada das ruas da cidade como espaço de convivência, debate e proliferação de ideias e transformaram-se em um símbolo da "rejeição" propagada.
Barricada montada por estudantes em rua de Paris – 1968 (Fonte: Jean-Claude Seine. Website: http://www.photos-mai68.com/)
Mais importante do que mostrar a cronologia dos acontecimentos do mês de maio é tratar do que significou o estabelecimento dos estudantes na rua, suas manifestações e como isso se relacionou com o significado de sua revolta. Conforme já vimos anteriormente, os jovens franceses se revoltam pelo desejo de não se enquadrar no "estabelecido". Ocupar a rua significava retomar um espaço suprimido. Grafitar os muros era expressar, em elementos materiais do "estabelecido", a crítica ao mesmo. A liberdade, para eles, estava na rua e em sua retomada. Todos poderiam falar, escrever, opinar. Séries de conferências foram realizadas, teatros ocupados para dar lugar a palestras e debates. Os primeiros tempos da revolta caracterizaram-se pela ausência da liderança estabelecida. O movimento propunha-se livre, independente. A criatividade e a imaginação estavam, naquele primeiro momento, colocadas no poder.
No fim do mês de maio, o presidente Charles de Gaulle pronuncia-se declarando seu repúdio aos que não deixavam os estudantes estudarem e lança o temor da expansão da esquerda internacional sobre a França. O movimento dos estudantes já estava enfraquecido e resiste apenas até meados de junho. Falta de projetos, falta de bases ou o que quer que tenha minado a mobilização e provocado sua derrota política, considera-se que a ação dos estudantes no mês de maio de 1968 foi extremamente importante porque, como diz Jean-Paul Sartre, permitiu a "ampliação do campo do possível"(12). As possibilidades foram exploradas e tentou-se renovar os instrumentos de contestação para além dos partidos e organizações de esquerda ou de direita. Discussão aberta da sexualidade, quebra de uma moral tradicional, contestação dos valores éticos da sociedade: tudo isso estava no jogo de maio de 1968 na França e gera repercussões nas mentalidades e comportamentos até hoje.
[Mais imagens sobre 1968 na França]
A "Primavera de Praga"
Pergunta um personagem fictício de um livro de Miguel Delibes(13): "Os estudantes andam revoltados em todo lugar e vocês sabem por acaso o que querem? Porque eu não sei. Porém na República Tcheca tinham motivos..."(14). Ao que o interlocutor, o personagem que representa o próprio Miguel Delibes, responde: "No que se refere aos universitários de todo o mundo posso dizer-lhe que o que querem é ar puro, respeito e coerência. A hipocrisia e a mentira lhes incomodam. Dizer uma coisa e fazer outra lhes deixa furiosos; bem como os tira do sério o fato de que seus pais 'moralistas' idolatrem suas 'propriedades'. Quanto à Tchecoslováquia, há um dado adicional de descontentamento: a falta de liberdade".(15)
Após o término da Segunda Guerra Mundial, a Tchecoslováquia(16) ingressou no campo de influência da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Em 1946, o Partido Comunista da Tchecoslováquia vence as eleições e dá início a uma política de estalinização, com a estatização de milhares de indústrias e empresas e a promulgação de uma nova constituição que deu margem à colocação na ilegalidade de diversos partidos políticos. A imprensa e os cidadãos também passaram a ser incomodados pela censura. Esse é um dos aspectos da "falta de liberdade" a que se refere Miguel Delibes. Na Tchecoslováquia, o Partido Comunista não só fazia parte do "estabelecido". Ele era o "estabelecido".
Em 1953, morreu Josef Stálin. Seu sucessor, Nikita Kruchev, no 20° Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética) critica a política estalinista e os abusos cometidos pelo ex-ditador. Tem início, então, um processo de desestalinização na maior parte dos países do bloco socialista. Este momento representa um marco, uma vez que se nota uma cisão no mundo que vive sob influência soviética entre aqueles que apoiavam o regime de Stálin e aqueles favoráveis a uma mudança de rumos. É a tomada de consciência de que algo poderia estar errado, ou sendo conduzido da forma menos correta. A Guerra Fria passa por um período de recrudescimento e, em 1955, em resposta à criação da Otan pelos países do bloco capitalista, a URSS funda o Pacto de Varsóvia, que era um acordo de cooperação militar e econômica entre os países do bloco socialista. Além disso, a Revolução Cubana de 1959, com sua posterior "crise dos mísseis", aumenta ainda mais a tensão entre EUA e URSS.
Dentro desse contexto, a desestalinização ocorre com sérios entraves no mundo socialista. Na Hungria, em outubro de 1956, estudantes deram início a protestos contra a ocupação soviética do país. Formava-se uma grande mobilização pela democratização do socialismo no país, chegando a colocar no poder Imre Nagy, líder de esquerda que prometia uma reestruturação democrática da política socialista. Uma das decisões de Nagy foi a de manifestar o desejo de retirar a Hungria do Pacto de Varsóvia. Em novembro de 1956, o Exército Vermelho adentrava o território húngaro, pondo um fim ao projeto de democratização da Revolução de 1956.
Na Tchecoslováquia o processo de desestalinização é conduzido com extremo cuidado e vagar. Em meados da década de 1960, começam a surgir o que Miguel Delibes chama de "homens novos"(17), aqueles que vislumbravam uma sociedade justa e socialista – é importante frisar que não há uma guinada em direção ao abandono do socialismo na Tchecoslováquia – com maior liberdade.
Em 1967, o presidente da República Popular da Tchecoslováquia era Antonin Novotny.
A economia tcheca não era já tão próspera quanto na década de 1950. Miguel Delibes argumenta que os principais problemas do regime socialista Tcheco eram ideológicos – opressão, censura, "Estado como pai"(18) (a "falta de liberdade" à qual nos referimos anteriormente) – e econômicos – falta de iniciativa, estagnação, baixa produção no campo. (19) Dentro de um quadro de supressão aberta de manifestações de oposição, os estudantes se manifestavam e entravam em confrontos diretos com os policiais. Embora suas reivindicações não fossem direcionadas – ainda – ao aparelho de poder soviético, sua combatividade merece destaque. A instabilidade do governo é clara. Pierre Broué reproduz uma entrevista de Cutka, alto funcionário do Comitê Central a M. Salomon, onde aquele diz que "pela primeira vez na História de nossa República, crianças nascidas e criadas sob o regime, não tendo recebido nenhuma influência além da educação socialista, foram espancadas pela polícia e exibiam slogans hostis ao governo e ao partido."(20) Estávamos, agora, em outubro de 1967. Os estudantes manifestavam-se contra o governo, bem como intelectuais e membros do próprio Partido Comunista.
Alexander Dubcek, tomado como um dos principais símbolos dos "homens novos", era, segundo Pierre Broué, um "burocrata (...) pouco conhecido". Adversário de Novotny "na cúpula do aparelho" e ocupando o cargo de secretário do Partido Comunista eslovaco(21), Dubcek defendia, como era o desejo da nova camada de intelectuais ("homens novos"), uma democratização do regime, das estruturas de poder na Tchecoslováquia.
Assumiu o cargo de primeiro secretário do Partido Comunista da Tchecoslováquia em janeiro de 1968. Em abril, lançou um projeto de mudanças que, em suas palavras, dariam ao socialismo uma face mais "humana". Seus projetos de reforma abarcariam os campos mais periclitantes da situação Tcheca – os campos ideológico/político e econômico, conforme dito anteriormente. Pretendia, sinteticamente, levar adiante um processo de democratização nas estruturas de poder no Partido Comunista da Tchecoslováquia e, consequentemente, na forma de administração do país, além de trazer também propostas de mudanças econômicas, com iniciativas de comércio com os países do bloco capitalista e a valorização da iniciativa no processo econômico. Além disso, defendia a supressão da censura à imprensa e às manifestações culturais. O caráter socialista do governo não era contestado. As propostas dos "homens novos" não significavam o desejo de inserção total no bloco capitalista e abandono da URSS.
Porém, dado o contexto histórico já exposto anteriormente, as reformas que começaram a ser implementadas alarmaram os dirigentes da URSS e os países membros do Pacto de Varsóvia. Em 20 de agosto de 1968, as tropas do Pacto de Varsóvia invadem a Tchecoslováquia.
Esta imagem capturada no dia 21 de agosto de 1968 mostra a ocupação de Praga pelas tropas do Pacto de Varsóvia (Fonte: http://library.thinkquest.org/C001155/index1.htm)
Dubcek foi preso e levado a Moscou. Tentou-se a resistência à invasão, mas tal movimento foi inútil. Brejnev, líder, àquele momento, da URSS, percebeu que o melhor a ser feito era manter Dubcek no poder, forçando-o, no entanto, a conduzir uma política que suprimisse as reformas já feitas e "fechasse" novamente o regime. A seguinte passagem do romance A insustentável leveza do ser do escritor tcheco Milan Kundera narra, de forma literária, momentos do processo de ocupação:
"A euforia geral durara apenas os sete primeiros dias da ocupação. Os dirigentes tchecos haviam sido levados pelo Exército russo como criminosos, ninguém sabiam onde estavam, todos temiam por suas vidas e o ódio pelos russos embriagava como uma bebida alcoólica. Era a festa inebriante do ódio. As cidades da Boêmia estavam cobertas de milhares de cartazes pintados a mão, mostrando com destaque inscrições sarcásticas, epigramas, poemas e caricaturas de Brejnev e de seu exército, de que todos zombavam como se fossem uma trupe de palhaços analfabetos. Mas nenhuma festa pode durar eternamente. Enquanto isso, os russo haviam forçado os representantes do povo tcheco, que tinha sido sequestrados, a assinar um acordo com Moscou. Dubcek voltou a Praga com o acordo e leu seu discurso pelo rádio. Seis dias de prisão o haviam diminuído a tal ponto que mal podia falar, gaguejava, tomava fôlego, parando no meio das frases com pausas intermináveis que duravam até meio minuto."(22)
Os estudantes tiveram um papel importante nos movimentos de contestação do socialismo soviético. Conforme dito anteriormente, é importante notar que na Tchecoslováquia as condições de prosperidade econômica da Europa Ocidental não existiam e o Partido comunista não era somente parte do "estabelecido". Era o "estabelecido". As condições estruturais para a revolta dos jovens eram diferentes. Existia um caminho possível nos meios "oficiais". Eram os "homens novos", era a nova orientação do partido. Mesmo assim, a força da contestação juvenil foi importante tanto no processo de crítica através de manifestações em 1967 quanto nas revoltas de resistência à ocupação em 1968.
Jovem escreve em cartaz no contexto da invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia (Fonte: http://library.thinkquest.org/C001155/index1.htm)
NOTAS
(1)Edgar Morin. "O jogo em que tudo mudou". In: Sérgio Cohn e Heyk Pimenta (orgs.). Maio de 1968. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 28.
(2) Olgária C. F. Matos. Paris 1968 – as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981, pp. 7-30.
(3) Tal quadro de consumo e de prosperidade econômica, é claro, varia entre os países, encontrando suas maiores discrepâncias entre os países integrantes da URSS, como veremos, por exemplo, no caso da República Tcheca.
(4)Na República Tcheca, o Partido Comunista era, efetivamente, o "estabelecido".
(5) Olgária C. F. Matos. Paris 1968 – as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 49.
(6) Antes da continuação do texto, faz-se necessário um adendo importante: a Sorbonne localiza-se em uma região chamada, em francês, de Quartier Latin, que significa "Bairro Latino". Tal nomenclatura nada tem de atual, e remete-se ao período medieval, onde a língua primordialmente utilizada pelos estudantes era o latim. Quartier Latin, portanto, remete-se a uma região da cidade de Paris onde está localizada a Sorbonne.
(7) Olgária C. F. Matos. Paris 1968 – as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 51.
(8) Olgária C. F. Matos. Ibidem, p. 67.
(9) Olgária C. F. Matos. Ibidem, p. 53.
(10) Adaptado de Edgar Morin. apud.: Olgária C. F. Matos. Paris 1968 – as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981, pp. 73-74.
(11) Olgária C. F. Matos. Paris 1968 – as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 72.
(12) Jean-Paul Sartre entrevistando Daniel Cohn-Bendit. In: Sérgio Cohn e Heyk Pimenta (orgs.). Maio de 1968. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 25.
(13) Intelectual espanhol que esteve presente nos eventos de 1968 em Praga. O livro em questão é La Primavera de Praga. Barcelona: Ediciones Destino, 1985.
(14) Miguel Delibes. La Primavera de Praga. Barcelona: Ediciones Destino, 1985, p. 34.
(15) Miguel Delibes. Idem, pp. 34-35.
(16) O país hoje conhecido como República Tcheca era parte integrante, desde 1918, de um Estado independente nomeado Tchecoslováquia. Em 1993, um acordo separou a Tchecoslováquia em dois territórios independentes: a República Tcheca e a Eslováquia. Neste texto, tendo em vista o período histórico tratado, utilizaremos o termo Tchecoslováquia.
(17) Miguel Delibes. La Primavera de Praga. Barcelona: Ediciones Destino, 1985, p. 29.
(18) Miguel Delibes. Idem, pp. 69-92.
(19) Miguel Delibes. Ibidem, pp. 46-65.
(20) apud.: Pierre Broué. A primavera dos povos começa em Praga. São Paulo: Kairós Livraria e Editora, 1979, p. 47.
(21) Pierre Broué. Idem, p. 36.
(22) Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Editora Riográfica, 1983, pp. 31-32.